trabalhar 2
J. andava por uma calçada de rua gasta, coberta por altas marquises de prédios, que por sua vez, se impunham e barravam a luz do sol. se dirigia ao trabalho sentindo a garganta inflamada e o peso de uma noite quase inteira passada em claro. caminhava um passo ritmado, tentativa desesperada de manter-se ao controle.
A mais de um ano trabalhava num escritório do bairro, conhecia aquelas ruas de cor, mas também bem além delas, conhecia quase toda a vida que as habitava. se sentia sobrecarregado por todas verdades que o davam base, as forças e encontros aleatórios que o mantinham distante de si mesmo, o piloto automático daquele ritmo mecânico que se mantinha a tanto tempo que ele já havia esquecido o que é não ter, o que era ser. Essas ruas, para ele, eram caminhos definidos da engrenagem máxima, pensava como sem esse seu trabalho tão tedioso poderia se manter longe de seus pais e não via um caminho, tentava ver todas as opções e essas se sobrepujavam a sua autoridade do eu, o desgastavam mais ainda. O jeito parecia ser apenas continuar rodando naquele movimento.
Atravessando uma virada de esquina, deu de cara com um morador de rua que ele não reconhecia como um dos locais do bairro, o homem segurava em sua mão esquerda uma cerveja, e na direita um espeto de churrasco. apenas essa vista já o intimidava. Se aproximando dele, o homem cambaleava como que ainda embriagado, enquanto murmurava algo que sua mente cronicamente atrasada queria ignorar, pois adcionava tempo ao seu caminho. - "tem como me ajudar" - dizia ele - "não como há 3 dias, minha mulher tá lá do outro lado", se aproximava mais, "ela também não come, guardei um cigarro pra ela, me ajuda por favor, qualquer trocado", e J. apenas tentava se desvencilhar do encontro ao murmurar que estava atrasado ou não carregava nada consigo agora, mas a visão do espeto parecia o aterrorizar de forma breve, trazendo a tona visões de noticiários e casos contados da violência urbana, lembrava da tv ligada no datena em sua infância e de forma velada manifestava um asco por aquele sem teto, mesmo tentando pensar sobre o que teria o levado àquela situação.
Após sua tentativa de acelerar o encontro com o morador de rua, J. continuou o rotineiro caminho para seu trabalho, e de novo veio a tona seu sentimento de sobrecarregamento com aquela situação, pensava sobre como conseguia viver bem e mesmo assim se sentir tão exausto, e isso o culpava constantemente. Nem ele sabia a razão de tudo isso, ultima vez que falou com sua terapeuta ela o aconslehou a melhorar os modos de sono e higiene, mas ele já parecia tão acostumado com aquele estilo de vida sinteticamente decadente do trabalho e faculdade que isso soou quase como um insulto, pensava já ter irremediavelmente se perdido no caminho, lembrava da sua sensação rotineira de estar apenas vendo seu corpo por uma tv de tubo, e lembrava do final de "I Saw The Tv Glow" - Estava envelhecendo, perdendo sua alma, ou era apenas uma visão distorcida sua? Se sentia mal em falar sua real idade mesmo sendo tão novo, parecia que o peso de camadas de história o negava constantemente. Pensou em como a raiz de todo esse seu pensamento desviado de recente poderia ser a monotonia da rotina, mesmo tendo certeza disso ter o acompanhado sua vida inteira, pensava em um jeito de dar uma pausa em tudo isso, quando lembrou de uma antiga ideia. - "Passar um tempo no hospital sem fazer nada provavelmente me ajudaria" - pensou, junto da visão de seus pais e amigos se preocupando com ele, e talvez vendo seu problema interno como real. Mas isso eram só seus devaneios enquanto caminhava para o trabalho, ainda faltava um tempo para chegar.
Chegando em um semáforo, com seu fone no ouvido tocando alguma das músicas que o lembravam de um relacionamento passado, viu um taxi a chegar numa velocidade média e pareceu a chance perfeita, "ser atropelado", "uma ou duas semanas sem trabalhar, sem ir para a faculdade ou responder por responsabilidades" apenas pareceu uma situação tão angelical à ele, que em uma fração de segundo não pensou e deu um calculado passo em falso que se transformou em um desequilíbrio. Foi pego em cheio pelo taxi, mas não contava com toda a sorte envolvida no processo. O volume de metal envolvido no impacto transferiu toda a energia para seu corpo pela lateral, causando um efeito de ricochete o fazendo se projetar diretamente na direção do parabrisa, a magnitude da força foi tamanha que em um instante seu tronco encefálico foi esmagado por dentro no impacto contra o capô, causando o alojamento daquele fone in-ear fundo em seu crânio, a música ainda tocava.
Quando seu corpo já se projetava contra o chão, uma torrente de sangue jorrava de seu nariz, e seus olhos escurecidos de sangue ainda continuavam abertos. A perícia não descartou a chance dele ter se jogado intencionalmente.